sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Sei que não é a hora

Sei que não é a hora de nós, homens, talvez com boas intenções, talvez por culpa, insistirmos em assumir o protagonismo na emissão de opiniões sobre um assunto que, essencialmente, diz respeito às mulheres. Tenho acompanhado à distância a discussão no Brasil, e tenho consciência de que é a voz das mulheres que deve ser ouvida daqui em diante, e não apenas no calor da discussão. O que tentarei fazer aqui é um relato, mas como a neutralidade não existe, estarão embutidas nas minhas palavras minha condição de homem e algumas críticas que arduamente tento elaborar a partir dessa minha condição. Estou em Moçambique, no continente africano, há cerca de 50 dias, e já vivi aqui por praticamente um ano e meio anteriormente. Se tem uma coisa que me dói é estar no papel de criticar a realidade do país e do continente que transformaram radicalmente minha forma de encarar a vida nos últimos 7 anos, mas acho que dadas as condições ela é necessária. Hoje é sexta-feira, tradicionalmente conhecido aqui como o Dia do Homem. A sexta-feira é o dia em que o homem está autorizado a sair pra se divertir sem ter hora para voltar, deixando sua mulher em casa (imagina-se) sozinha ou com os filhos. O fato do chamado Dia do Homem ser uma data semanal, enquanto o Dia da Mulher Moçambicana é comemorado apenas uma vez por ano (ainda que seja feriado nacional), já é sintomático quanto ao tipo de relação que tentarei mostrar aqui. É verdade que existe um discurso de empoderamento da mulher moçambicana, primeiramente devido ao passado socialista e suas ambições de uma maior igualdade em todos os aspectos, e atualmente como agenda política e pauta de organizações internacionais sobre a questão de gênero. Mas, pelo que sinto, é apenas um discurso. Sim, existem mais mulheres na política, existem mais mulheres nas empresas e existem mais mulheres na mídia, mas numa quantidade consideravelmente menor do que os homens. Para se ter uma idéia, durante o trabalho de campo que estou desenvolvendo aqui, pude realizar 9 entrevistas até o momento, e apenas uma delas foi com uma mulher. Isso não significa, porém, que elas não trabalham - muito pelo contrário. São elas que dominam os mercados populares da cidade e o mercado informal das ruas, sem falar nas inúmeras empregadas domésticas, devidamente uniformizadas, que tomam conta das casas dos mais abastados de Maputo. Obviamente que, além de trabalhar fora, elas também fazem todo o serviço doméstico em suas casas (todo, sem exceção), como cozinhar, lavar roupa, fazer faxina e cuidar dos filhos. Em 2008/09, na minha condição de branco-estrangeiro, trabalhava na minha casa uma dessas mulheres, a Gertrudes, e no melhor estilo “Que horas ela volta?” criamos uma amizade que fez com que eu fosse por algumas vezes almoçar na casa dela com sua família na periferia de Maputo. Durante esses almoços, ficou muito clara a relação doméstica entre homens e mulheres: enquanto os homens ficavam bebendo cerveja e conversando, as mulheres se desdobravam para fazer com que tudo funcionasse perfeitamente: rachando lenha, pilando milho, cozinhando e lavando a louça. A recompensa? Na hora da refeição, os homens eram os primeiros a se servir, e tinham o direito de sentar à mesa, ao passo que as mulheres comiam depois, sentadas em uma esteira no chão. Outro assunto digno de menção é a questão do assédio em Moçambique. Em resumo, não existe o menor constrangimento (o menor mesmo!) para um homem em abordar uma mulher na rua na tentativa de angariar pelo menos um contato de telefone. Tenho visto algumas mulheres responderem à altura, mas no geral o silêncio impera, um silêncio, aí sim, constrangido e impaciente. A questão é que o assédio é completamente corriqueiro aqui em Maputo, encarado com uma naturalidade que intriga quem está mais antenado na discussão feminista brasileira. O que eu quero dizer com isso tudo é que, aquele discurso de que o homem e a mulher naturalmente cumprem papéis diferentes na sociedade, é o discurso dominante aqui. Quem me conhece sabe que nutro, desde que vim pra cá pela primeira vez, certa idolatria pelo músico nigeriano Fela Kuti, considerado um dos artistas mais contestadores da cultura africana. Pois após dois documentários vistos, uma coletânea de artigos e uma biografia lidas sobre ele, me deparei com uma pessoa incrivelmente contraditória, que conseguiu ser tão radical politicamente quanto conservador em relação às mulheres. Em uma de suas músicas mais famosas, “Lady”, ele basicamente zomba das mulheres que, sob influência do Ocidente (segundo ele), começaram a pensar que podiam ser iguais aos homens. Na sua busca pela essência de uma cultura africana, casou-se ao mesmo tempo com 27 mulheres, alegando que o homem precisa estar rodeado de mulheres que o protejam, pois esse é o papel delas na sociedade, naturalizando assim a poligamia. Aproveito o gancho para acabar o texto com uma indicação literária. É um livro de uma autora moçambicana, Paulina Chiziane, chamado “Niketche: uma história de poligamia”, e pelo que entendi ele não só trata da poligamia de uma maneira diferente como é uma espécie de manifesto feminista de Moçambique. Tenho em casa, e infelizmente ainda não li, mas imagino que seja facilmente encontrado no Brasil, podendo ser um alento para quem se incomodou com o que escrevi até aqui. Confesso ter sido muito difícil escrever esse texto, tanto por minha condição na sociedade como pelo carinho por todo o universo africano-moçambicano que me foi aberto há alguns anos. Mas penso ter sido necessário. Só assim poderei expelir, pouco que seja, o machismo que vive em mim.

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